Dossiê "caso Rhodia"1.1.
Violência e Barbárie 2. Crimes contra a humanidade . 2.1.
Rhodia 30 anos - Um crime continuado 3.1.
Contaminando o Futuro 4.1.
Muito além das fábricas 5.1.
O caminho de volta 6.1. Um "lixão por excelência" |
1. INTRODUÇÃO
1.1. Violência Barbárie
Não foi por obra do acaso que a ampliação e a consolidação do pólo petroquímico e siderúrgico de Cubatão coincidiu com o regime iniciado pelo golpe de Estado de abril de 1964. Os militares e as classes conservadoras tomaram o poder e inauguraram uma ditadura que se prolongou por mais de duas décadas.
Toda região da Baixada Santista se transformou em "área de segurança nacional"- território livre para o exercício de repressão brutal e de arbítrio sem limites contra a população e a classe trabalhadora.
Pela carga de violência e barbárie, duas histórias refletem de forma emblemática este período - o "navio-presídio Raul Soares"e o "caso Rhodia".
A história do Raul Soares, simbolizando a repressão dantesca na Baixada Santista está sendo desvendada.
O "caso Rhodia" vai ser contado, sem que se perca uma linha dessa história de crime, terror e impunidade.
As duas histórias mostram faces de uma mesma moeda. A repressão de um lado, a exploração do homem e da natureza do outro. Ambas visando o poder e o lucro. Elas não podem ser esquecidas para que não se repitam.
Uma das principais metas dos militares era abrir a economia para as multinacionais e entrar para o mundo capitalista moderno. O Brasil deveria se tornar uma grande potência.
Cubatão foi o exemplo mais concreto desse modelo - o retrato em preto e branco daqueles tempos obscuros. O pólo industrial produziu uma das cidades mais poluídas do planeta - conhecida no mundo como o "Vale da Morte".
E no conjunto desse pólo industrial, que degradou de forma irreversível parte vital dos ecossistemas de toda a região, merece lugar de destaque a multinacional francesa Rhône-Poulenc e sua subsidiária brasileira - a Rhodia.
Este dossiê pretende relatar de forma sucinta e objetiva a trajetória de destruição da natureza, doenças e mortes causadas pela Rhodia durante três décadas, só na Baixada Santista.
A multinacional francesa chegou ao Brasil em 1919. Nestes anos todos, transgrediu leis da livre concorrência através de monopólios, poluiu rios como o Tamanduateí - que chegou a ser conhecido como o "rio da Rhodia", foi a Quarta maior poluidora do Tietê, hoje é uma das grandes poluidoras da região de São José dos Campos. Não bastasse isso, desrespeitou acordos coletivos, perseguiu dirigentes sindicais, terceirizou serviços de maneira irresponsável e criminosa e chegou ao cúmulo da ingerência nos assuntos internos de um país soberano. A Rhodia, pelas mãos do seu vice-presidente, Michel Chevanon, contribuiu com seiscentos mil dólares para o esquema Paulo César Farias. Os dólares eram destinados a ajudar o ex-presidente Fernando Collor de Mello a formar sua bancada no Congresso Nacional, na campanha eleitoral de 1991.
Outro caso intrigante é a "ajuda"da Rhodia e outras multinacionais à Força Sindical e a Luiz Antonio de Medeiros, dentro do esquema do ex-presidente Fernando Collor de Mello. A Rhodia, agora pelas mãos do seu próprio presidente, Edson Vaz Musa, financiava o "caixa dois"da Força Sindical para criar um "sindicalismo de parceria", o tipo de "sindicalismo que as multinacionais queriam ver progredindo aqui no país".
Wagner Cinchetto, assessor de Medeiros, denuncia à Folha de S. Paulo - 24 de março de 1995: "Nós não tivemos mais articulação com os empresários. Aliás, voltamos sim a conversar com o Edson Vaz Musa, o presidente da Rhodia. Ele reclamou do posicionamento do Medeiros(de não defender e dar respaldo ao ex-presidente Collor). Disse que ficou seriamente comprometido tudo o que a gente tinha combinado, aquelas ajudas, que estava difícil, que a Rhodia não ia mais ajudar".
1.2. Crimes corporativos
Mesmo delimitando o dossiê ao "caso Rhodia-Cubatão", as dificuldades para encadear fatos e ocorrências são consideráveis. Por inúmeros motivos, como a sonegação deliberada de dados e de informações que marcaram tanto o regime autoritário da época quanto a atuação da multinacional Rhodia, que desde o início de suas atividades na região adotou a política de esconder, escamotear a verdade e seus atos criminosos.
Durante a ditadura militar o Brasil vivia sob uma censura insana. Até a divulgação de simples informações sobre a qualidade do ar ou da água constituia-se em "ameaça à segurança nacional".
Para as empresas e as multinacionais de Cubatão, principalmente para a Rhodia, este clima de absoluto cerceamento de informação e de opinião permitia a prática continuada de transgressão às leis do país e dos mais elementares princípios de convivência com os trabalhadores, e o povo que as acolheu e que lhes proporcionou lucros extraordinários.
Assim, os trabalhadores não tinham qualquer informação sobre o risco da manipulação de produtos letais e dos perigos da exposição intensa e permanente a substâncias químicas de extrema toxicidade.
A população ignorava por completo o perigo da proximidade dos "lixões químicos". A desinformação era deliberadamente exercida. De forma cruel e desumana, rejeitos altamente perigosos e de reconhecido potencial cancerígeno eram oferecidos a pessoas humildes como fertilizantes, como adubo.
O Poder Público e os órgão responsáveis pelo monitoramento das atividades industriais em relação ao meio ambiente - como a Cetesb - ou se omitiam ou aceitavam dados falseados e informações fraudadas. Tudo leva a crer que se estabeleceu uma conivência tácita entre a Rhodia e alguns funcionários destes órgãos, tal a dimensão e a extensão do despejo inadequado de resíduos na região e a impunidade da multinacional.
Apesar de tudo, existem levantamentos, reportagens, entrevistas, laudos técnicos e periciais, trabalhos acadêmicos e pesquisas de centros universitários produzidos sobre a poluição em Cubatão e, especificamente, sobre o "caso Rhodia".
O estudo mais completo e abrangente foi escrito pela Dra. Agnes Soares Mesquita, médica sanitarista, que desenvolveu um longo trabalho junto à população de Samaritá, no município de São Vicente, a área mais intensamente contaminada pelos "lixões da Rhodia".
É a "Dissertação de Mestrado" à Faculdade de Saúde Pública, da Universidade de São Paulo, "Resíduos tóxicos industriais organoclorados em Samaritá: um problema de saúde pública"- 1994.
A "Dissertação" coloca os problemas da contaminação por produtos químicos tóxicos e a saúde pública dentro de um cenário amplo. São analisados de forma abrangente e crítica os aspectos políticos, sociais, econômicos, empresariais e de administração pública que geraram esta tragédia ambiental e humana. Baseado em pesquisa prolongada e consistente, o estudo apresenta também uma bibliografia específica sobre o tema e, ao mesmo tempo, interdisciplinar. A "Dissertação" da Dra. Agnes é um ponto de referência indispensável para qualquer trabalhado que venha a ser realizado sobre o assunto.
Este dossiê tem no estudo da Dra. Agnes sua fonte e sua contribuição mais valiosa.
Outra fonte é o livro do advogado americano Russel Mokhiber: "Crimes Corporativos", editado agora pela Scritta, que relata as catástrofes ambientais e os crimes contra populações inteiras provocados pelas multinacionais.Crimes idênticos aos cometidos pela Rhône-Poulenc no Brasil. Leitura obrigatória para quem mora na Baixada Santista e bebe a água que vem de rios contaminados por resíduos organoclorados depositados às margens do rio Cubatão e Pilões pela multinacional francesa.
O objetivo das entidades e do evento é denunciar à sociedade, aos poderes públicos, aos trabalhadores da Rhodia e da Rhône-Poulenc nos 140 países onde ela atua, às ONGs nacionais e internacionais e à cada cidadão consciente os crimes cometidos pela Rhodia.
Na certeza de que estas denúncias e a luta permanente vão obrigar os acionistas privados da Rhône-Poulenc, e seu maior acionista - o Governo francês, dentro das leis brasileiras e internacionais - a indenizar os trabalhadores e pessoas vítimas da contaminação e a ressarcir o imenso passivo ambiental que a Rhodia deve à Baixada Santista.
Este texto é aberto. Serve como roteiro para a apresentação, debate e encaminhamento do dossiê final.
Crimes contra a humanidade
"Alguns executivos de indústrias químicas merecem estar na cadeia. Temos veteranos de guerra e crianças que passaram anos tentando viver, sem ajuda, com catastrófica incapacidade. Agora que sabemos quem é responsável, queremos a ajuda para os veteranos e queremos que as pessoas que venderam o produto sejam presas. Elas são criminosas. Elas sabiam".
Michel Ryan
(veterano da guerra do Vietnã - 1982)
2. CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
2.1. 30 anos - Um crime continuado
De todas as agressões sofridas pela natureza e pelo homem, ao longo da história do Brasil, nenhuma foi mais completa e abrangente que a cometida pelas indústrias que se instalaram no pólo petroquímico e siderúrgico de Cubatão.
Entre as indústrias poluidoras deste pólo, a Rhodia - subsidiária da multinacional Rhône-Poulenc, conseguiu a performance mais ampla, persistente e criminosa.
Há três décadas(1965 - 1995) que os grupos franceses Progil e Rhône-Poulenc são responsáveis por uma intensa poluição química de organoclorados, em toda a Baixada Santista, com a sequela brutal de doenças e mortes.
2.2. Turquia, Love Canal, Seveso, Bhopal, Vietnã
Os antecedentes catastróficos e as consequências da poluição química por organoclorados tiveram repercussão internacional nos meios científicos e na mídia.
A partir deles iniciou-se profunda investigação sobre os impactos causados à saúde humana e ao meio ambiente. Foram divulgados centenas de estudos e pesquisas. Houve a proibição de produção de uma série de organoclorados em diversos países do mundo, a partir da década de setenta. Não há qualquer possibilidade de que os executivos e pesquisadores da Rhône-Poulenc, uma das gigantes entre as multinacionais do setor químico, desconhecessem os riscos aos quais ela estava expondo os seus trabalhadores e a população da Baixada Santista, despejando resíduos químicos organoclorados de forma inadequada e criminosa.
Com toda a certeza a Progil, a Clorogil, a Rhône-Poulenc e a Rhodia sabiam.
A degradação ambiental provocada por estas multinacionais foi tão catastrófica quanto as tragédias ocorridas na Turquia(1954 -1959); no Love Canal, nos Estados Unidos(1940 - 1950); em Seveso, na Itália(julho de 1976); e na guerra do Vietnã(1962 -1970).
Turquia (1954 - 1959)
Na Turquia, grãos de trigo tratados com o fungicida à base de hexaclorobenzeno - HCB - para servirem como sementes, foram utilizados inadvertidamente como alimento, por aproximadamente 4 mil pessoas. O consumo da farinha de trigo contaminada pelo HCB, durante anos seguidos, deu origem à epidemia da doença que ficou conhecida como Porfiria Turca.
Em muitos vilarejos atingidos pela epidemia, quase todas as crianças menores de dois anos, contaminadas através da placenta ou do leite materno, apresentaram lesões graves e morreram.
Após o episódio houve um acréscimo significativo nos índices de mortalidade da população exposta ao alimento contaminado.
Depois de vinte e cinco anos ainda persistiam os sinais e sintomas da Porfiria Turca, como lesões hepáticas, manchas cutâneas, artrites, cólicas.
Estados Unidos (1942 - 1950)
Nos Estados Unidos, fronteira com o Canadá - próximo a Niagara Falls, uma indústria química, a Hooker Chemical Plastics, depositou entre 1942 e 1950, 20 mil toneladas de mais de duzentos tipos de resíduos químicos perigosos no leito seco de um canal abandonado. Nos anos seguintes, a área em redor do depósito começou a ser urbanizada. Em 1953 a Hooker vendeu o trecho do Love Canal onde estava o depósito para o Conselho Escolar, para a construção de escolas.
A disposição inadequada e a falta de monitoramento do depósito provocou os primeiros indícios do desastre. Em 1958 os resíduos organoclorados afloraram em alguns pontos da superfície do playground das escolas. Em 1970 os resíduos começaram a migrar em direção às residências, aparecendo nos porões e nos quintais das casas.
Após a manifestação dos resíduos as crianças começaram a apresentar erupções cutâneas dolorosas. Toda a área foi evacuada e as famílias removidas.
Estudos epidemiológicos indicaram aumento relativo de abortamentos e recém-nascidos de baixo peso, além de alterações hepáticas. Uma das antigas moradoras, que quando criança brincava no playground, casou-se e deu à luz a duas crianças cegas.
Durante as investigações ficou provado que desde 1958 a Hooker sabia das consequências da exposição àqueles resíduos organoclorados e não informou a população. A Hooker não socorreu as vítimas e eximiu-se de qualquer responsabilidade legal. O governo americano arcou com as despesas de remoção das famílias.
Itália (1976)
Na Itália, nas proximidades de Seveso, a Icmesa instalou uma fábrica de triclorofenol. Em julho de 1976, aconteceu o acidente que ficou como exemplo do catastrófico risco da fabricação de produtos químicos.
Uma explosão no reator do triclorofenol liberou uma grande nuvem de dioxina, densa, gasosa e particulada, que espalhada pelo vento, atingiu as casas e os campos próximos à fábrica. No interior desta, 156 operários sofreram o impacto e 37 mil residentes na região ficaram expostos à dioxina.
Milhares de animais morreram logo nos primeiros meses. Uma mulher que residia próximo à fábrica morreu de câncer do pâncreas, com autos teores de dioxina.
O acúmulo de experiências anteriores, que indicaram o perigo de mal-formações nos fetos, obrigou o Vaticano a permitir mais de 2 mil abortos. As famílias da área atingidas foram removidas, a produção agrícola e a criação de animais para o consumo humano foram condenadas.
De acordo com o nível de contaminação de dioxina, observou-se a presença de cloracne e alterações citogenéticas.
Índia (1984)
Na madrugada de 03 de novembro de 1984, um vazamento na fábrica de pesticidas da Union Carbide Índia liberou 40 toneladas de gases mortais sobre a população de Bhopal.
O impacto do isocianato de metila matou mais de 5 mil pessoas, feriu 200 mil e deixou milhares de indianos com doenças permanentes. Abortos, nascimento de crianças com deformidades, problemas respiratórios, oculares e mentais. E a expectativa cruel de efeitos carcinogênicos e teratogênicos a longo prazo.
Foi sem dúvida o maior desastre industrial da história. Alguns fatos mostraram o descaso criminoso e o comportamento bárbaro no Terceiro Mundo.
A população estava totalmente desenformada do perigo a que estava exposta. Não tinha idéia da letalidade das matérias-primas utilizadas no processo de produção.
Entre 1978 e 1984 ocorreram seis acidentes precursores da catástrofe de 3 de dezembro. Um estratagema legal transferiu o julgamento dos processos indenizatórios para a Índia, isentando a Union Carbide multinacional e responsabilizando a Union Carbide Índia Ltda. Sem recursos para as indenizações e em estado pré-falimentar, a Union Carbide Índia Ltda. se safou das responsabilidades financeiras.
À Union Carbide multinacional restou impunidade.
Às vítimas de Bhopal restou a herança de doenças e da morte.
Vietnã (1962 - 1970)
Entre 1962 e 1970 o Exército americano despejou 72 milhões de litros de herbicidas sobre o Vietnã, o que destruiu mais de 1 milhão e 700 mil hectares da floresta. Entre os desfolhantes usados estava a dioxina conhecida como "agente-laranja".
No primeiro ano dessa ação de guerra química, os vietnamitas enviaram relatórios denunciando o nascimento de crianças com deformidades brutais, filhos de gestantes moradoras na zona pulvirizada.
Os bombardeios químicos só cessaram em 1970 depois de uma longa campanha de protestos de cientistas e entidades civis e ambientalistas. As consequências para a população vietnamita atingida foram pouco divulgadas. Mais a tragédia que se abateu sobre os soldados americanos e suas famílias provocou comoção nacional nos Estados Unidos.
Calcula-se que dos 2 milhões e 800 mil soldados que lutaram no Vietnã, 40 mil provavelmente foram contaminados por produtos químico tóxicos e dioxinas.
Pelos efeitos prolongados dessas substâncias, calcula-se também que além de doenças e mortes elas podem gerar pelo menos 2 mil crianças com deformações.
Dezesseis mil famílias de veteranos foram aos Tribunais Federais com ação policial contra a Dow Chemical e outras indústrias químicas fornecedoras do Exército americano. Cálculos indenizatórios indicam valores de bilhões de dólares.
Da mesma forma que a Rhône-Poulenc, a Union Carbide e as multinacionais químicas, a Dow negou por muitos anos os efeitos danosos e teratogênicos da dioxina.
Na longa disputa judicial, surgiu uma extensa listagem de casos comprovando a relação entre as exposições a produtos organoclorados à diversas doenças.
A cloracne aflige milhares de trabalhadores, com casos comprovados, desde 1937, quando madereiros que utilizavam Dowcid H (tetraclorofenol) contraíram a doença. A cloracne sempre foi acompanhada de severos danos hepáticos, distúrbios neurológicos e outras lesões graves.
Inúmeros ex-combatentes morreram de câncer e geraram filhos deformados. Como a filha de Michael Ryan, veterano da guerra do Vietnã, que nasceu sem reto, sem uretra, dois úteros, duas vaginas, quatro ovários, um ombro a menos, problemas na espinha, problemas musculares, falta de dedos e buracos no coração.
Testemunhos e estudos de médicos e cientistas comprovam que a Dow sabia há muito anos d seqüelas e doenças provocados pelos seus produtos. Mas escondeu do público e escamoteou suas descobertas sobre a dioxina para não provocar nova regulamentação do Governo americano sobre a indústria química. E não impedir grandes transações com o Exército americano e o setor agrícola do mundo inteiro.
A Dow Chemical e as seis indústrias fornecedoras dos organoclorados para guerra do Vietnã sabiam.
3. FÁBRICAS DE VENENO
3.1. Contaminando o futuro
A Rhodia despejou na Baixada Santista toneladas de resíduos químicos organoclorados, comprometendo de forma irreversível um meio ambiente rico e biodiversificado, formado pelo estuário, manguezais, restingas, complexo florestal atlântico, ecossistemas afins e integrados.
A Rhodia contaminou áreas de preservação de mananciais, rios estratégicos para o abastecimento futuro dos municípios da região, o solo e o lençol freático de áreas fundamentais para a expansão econômica da região - como a área continental de São Vicente.
Marijane Vieira Lisboa, do Greenpeace, em audiência pública à Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmera Federal afirmou: "É um quadro de extrema degradação, de catástrofe ambiental. Pelo conhecimento que tenho, enquanto Greenpeace, podemos afirmar que não há caso idêntico no mundo. É considerado o caso mais grave. São 12 mil toneladas de resíduos seguramente despejados no meio ambiente. Outro caso mais grave que conhecemos é o dos Grandes Lagos, nos Estados Unidos, com cerca de 2 mil toneladas".
"Gostaria de lembrar que essas 12 mil toneladas são uma estimativa mínima feita pela Cetesb quando se instruiu a Ação Civil Pública. Baseando-se no fato de que durante dois anos foi essa a média de resíduos que a Rhodia deve obrigatoriamente ter produzido e, portanto, ter despejado no meio ambiente. Já que para esses dois anos (1976/1978) existem provas que a Rhodia assinou contratos com empresas transportadoras para jogar os resíduos na região. Ou seja, podemos estar tratando não de 12 mil toneladas, mas de 40, 60 mil toneladas, não sabemos quanto. Porque entre 1978 e 1985, quando a Cetesb exigiu que a Rhodia parasse de jogar esses resíduos, passaram-se oito anos. O que a Rhodia fez com estes resíduos nós não sabemos".
Segundo Luiz Carlos de Medeiros, então assessor de imprensa da Rhodia, só as 2 mil e 700 toneladas de resíduos, despejados em Samaritá, ao entrar em contato com a areia contaminaram um volume de 50 a 70 mil toneladas.
E as outras presumíveis 10 mil toneladas, contaminaram que volume?
O volume de solo e areia contaminados é incalculável. Assessores especiais do então Secretário do Meio Ambiente José Lutzemberg - Sebastião Pinheiro e Jairo Restrepo, avaliam este volume em mais de 300 mil toneladas.
3.2. 1965 - Rodovia Piaçaguera, km 4, Cubatão
A Clorogil S/A . - Indústria Química foi constituída em 1965. Era uma sociedade formada paritariamente pela Progil - Socyeté Anonyme - Paris, França; e pela Carbocloro S/A . Indústria Química - São Paulo - Brasil.
A fábrica da Clorogil, localizada no km 4 da Rodovia Piaçaguera, em Cubatão, iniciou suas operações em 1966 produzindo solventes e fungicidas clorados.
Os fungicidas são produzidos a partir do cloro, fenol (originando-se destes o pentaclorofenol) e soda cáustica, sendo o fungicida pentaclorofenato de sódio conhecido como "pó-da-china". Em sua produção surgem inúmeros contaminantes. Entre os mais agressivos e letais ao ser humano estão o dibenzo dioxinas policloradas e os policlorados dibenzofuranos. O sub-produto indicativo da contaminação, pelo volume gerado e por suas características, é o hexaclorobenzeno - HCB.
Os resíduos industriais perigosos gerados pela produção da primeira unidade química da Clorogil foram dispostos de forma inadequada e criminosa na área da própria fábrica, além de outros locais desconhecidos ao longo de toda a Baixada Santista. A controvérsia nasce do volume de "lixo químico" que ficou na área da fábrica e de quanto volume foi para os "lixões" que começavam a se formar.
A questão da responsabilidade pelo descarte perigoso continua em discussão.
Alguns trabalhadores da Rhodia afirmam que a Clorogil nunca despejou um quilo de resíduo químico fora da fábrica. O testemunho de José Nepomuceno Teixeira dos Santos, com dezoito anos de Rhodia é categórico: "Conheço a Rhodia desde 1977. Vi quando foram jogados os resíduos. Até 77 esta firma (Clorogil) não jogou um quilo de veneno fora. Ela passou a jogar a partir de 1977, já como Rhodia. Quando ela acusa a Clorogil também não é verdade porque a Clorogil nunca jogou. Isto era feito em transporte da unidade situada dentro da Carbocloro, posta dentro de caçambas, onde seriam jogados em Samaritá, no Quarentenário e em outros lugares por aí. Mas isso tudo a partir de 1977, porque até meados de 1977 esses resíduos eram depositados dentro do terreno da própria Rhodia" (Audiência Pública - ALESP - 24/03/93) .
3.3. Rhodia - Clorogil - irmãs siamesas
Fortes evidências indicam que antes mesmo de 1965, a Rhône-Poulenc e Progil - Socyeté Anonyme já mantinham empreendimentos comuns.
Um indício consistente dessa antiga parceria foi o projeto e planejamento, no ano de 1970, de uma fábrica de tetracloreto de carbono e percloroetileno que seria construída na mesma área da primeira fábrica, ao lado da unidade do pentaclorofenato de sódio.
A nova fábrica teve a participação conjunta da Rhodia, que efetuou os estudos técnicos para a implantação da Progil, que contribuiu com o modelo do processo industrial da produção; e da Rhône-Progil, que fabricou as máquinas e equipamentos importados da França, com financimento garantido pelo Banco Central do Brasil.
Fica então cristalino que já no início da década de setenta havia um envolvimento empresarial concreto entre a Rhodia e a Clorogil.
A Promotoria Pública de Cubatão apresentou uma lista de acionistas que comprova o controlo acionário da Rhône-Poulenc sobre a Clorogil, desde pelo menos 1972.
Esta sequência de fatos e provas derruba o embusta apregoado pela Rhodia - o da sua não responsabilidade pelos "lixões químicos"da Baixada Santista.
Durante anos a Rhodia se esquivou de qualquer responsabilidade sobre o despejo de resíduos organoclorados, alegando desconhecimento dos mesmos e imputando à Clorogil todos os descartes criminosos de "pó-da-china".
3.4. 1974 - Da Baixada Santista à camada de ozônio
Em 1974 a nova fábrica da Clorogil/Rhodia passou a produzir tetracloreto de carbono e percloroetileno. A capacidade média de produção seria de 18 mil toneladas/ano. Mas não se sabe a quantidade real que esta produção gerava de resíduos perigosos. Pelo comportamento das multinacionais francesas, qualquer informação deve ser colocada em dúvida.
As matérias-primas utilizadas - o propeno e o cloro, geravam como sub-produto o ácido clorídrico. Os resíduos tóxicos do processo de produção eram principalmente o hexaclorobenzeno - HCB - e o hexaclorobutadieno - HCBD. Entre outros dejetos, em menor quantidade mas não menos lesivos, estavam o tetraclorobenzeno, o clorofórmio, o tricloroetileno, etc.
O tetracloreto de carbono é usado na fabricação de gás freon - um dos agentes clorados agressores da camada de ozônio. É insumo também de inseticidas. O percloroetileno é usado como desengraxante pela indústria automobilística e de autopeças e utilizado na fabricação de solventes e produtos de limpeza.
Agora, duas fábricas operavam à plena capacidade. A primeira denominada de "penta"(pentaclorofenato de sódio), a Segunda "tetraper"(tetracloreto de carbono e percloroetileno). Ambas causando danos irreversíveis à saúde dos trabalhadores. Ambas despejando um volume de cada vez maior e diversificado de venenos, na área da fábrica, nos rios, no solo da Baixada Santista.
3.5. 1966/1976 - Anos de chumbo
Os dez primeiros anos de atividade da Clorogil/Rhodia, de 1966 até a "aquisição"definitiva da Clorogil pela Rhodia, em 1976, foram anos nebulosos. Os dados são escassos, as informações truncadas, a maioria dos trabalhadores sobreviventes estão em lugares incertos e não sabidos. Qual o número de trabalhadores que passaram pelas duas fábricas do "penta" e do "tetraper", quantos foram contaminados, quantos morreram, qual a quantidade dos resíduos venenosos, qual a destinação dada ao "lixo químico" pela Rhodia e seus transportadores contratados? E as condições das máquinas e equipamentos , o ambiente ocupacional, os exames médicos periódicos, o acompanhamento e o monitoramento dos contaminados?
Tudo é uma grande interrogação. A densa nuvem que cobriu aqueles anos, deve ter escondido, com toda a certeza, crimes de toda a ordem praticados pelas multinacionais contra os trabalhadores e a população.
Dois crimes dados a público no final destes dez anos foram as mortes de dois operários da fábrica do "penta": Mário de Andrade Araújo e Wanderval Leão Santana. Estas mortes por intoxicação aguda ao pentaclorofenato e a "aquisição" da Clorogil pela Rhodia, em 1976, começaram abrir as portas da fábrica do pentaclorofenato e a fornecer os primeiros indícios que permitiriam reconstituir alguns crimes que ocorreram nesses anos. Mesmo sob uma repressão implacável, a sociedade civil dava os passos iniciais de auto-organização.
As duas mortes repercutiram, através da imprensa, causando indignação crescente e clamor popular.
Entretanto, a Rhodia resistiu. Apesar da situação da fábrica e as condições de trabalho terem atingido o limite da morte e da epidemia de cloracne e as doenças hepáticas comuns à exposição ao HCB, a Rhodia resistiu ao fechamento da fábrica do "penta".
3.6. 1976/1978 - Rhodia, dois anos de "penta"
Nos dois anos entre 1976, quando a Rhodia sai dos bastidores e entra em cena; e 1978, quando a pressão dos trabalhadores e da sociedade organizada fecha a fábrica do "penta", ocorreram fatos de surrealismo, de teatro do absurdo.
Em primeiro lugar, é preciso relatar que mesmo com a morte de trabalhadores e os sintomas graves de doenças provocadas pela exposição aos produtos tóxicos, a Rhodia continuou com o mesmo comportamento. Os métodos sujos de produção foram intensificados e agravados.
Os trabalhadores começaram a sentir na pele as seqüelas da intoxicação progressiva. Surgiram por todo o corpo de diversos trabalhadores erupções cutâneas dolorosas e fétidas - cloracnes, que eram chamados de "caroços". Esses "caroços" eram a parte visível e mal cheirosa de uma série de sintomas que acusavam doenças hepáticas, do sistema nervoso, uma série delas que serão descritas na sequência.
Um trabalhador que morreu na época, Wanderval Leão Santana, com problemas hepáticos fatais apresentava um estado lastimável. Relata José Nepomuceno Teixeira dos Santos - dezoito anos de Rhodia: "Isso eu presenciei, eu vi. Antes de morrer o Santana não tinha mais lugar no corpo para nascer caroço e o mal cheiro era insurpotável".
Para se ter idéia da intensidade da cloracne e das manifestações do HCB no organismo, o caso de Francisco Alves Moura é exemplar. Moura sofreu quarenta e oito intervenções cirúrgicas para extipar os "caroços". Como operador de granulação, desde o início de suas funções Moura manteve contato direto com o pentaclorofenato de sódio. Até sua família, pela simples manipulação das roupas usadas no trabalho da fábrica, foi contaminada. Seu organismo tem severo comprometimento pulmonar, hepático e dermatológico.
3.7. Perfume Francês
Na época ocorreu um fato inimaginável, revelador do clima kafkaniano vivido pelos trinta trabalhadores da fábrica do "pó-da-china".
A Rhodia, com todos os exames médicos na mão, com exames médicos alternativos, sabendo a gravidade do estado de saúde de seus funcionários, toma uma providência surrealista. É Nepomuceno quem relata: "A Rhodia é tão ré confessa que ela pagava dentro de Santos o melhor instituto de beleza que tinha para nós. Éramos tratados como os mal cheirosos. O salão era o Simas, na praia, ali perto da rua Maranhão com a avenida Presidente Wilson. Eu tinha uma limpeza de pele por semana, no mesmo salão onde as madames, mulheres de capitão, de prefeito, essas esposas todas iam. E eu também tinha direito".
Moura também descreve a marginalização sofrida pelos 30 trabalhadores do "penta" no dia-a-dia: "Ninguém, na própria Rhodia, gostava de chegar perto de nós. A empresa designou uma perua somente para nos levar. No restaurante, ninguém sentava perto de nós. Havia uma mesa no refeitório só para o pessoal do penta".
As mortes e a calamidade das doenças manifestadas provocaram um indignação crescente dos trabalhadores que amparados legalmente pelos Sindicatos e pelo Condema - Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Cubatão, conseguiram que a fábrica, até então inacessível, fosse vistoriada por órgãos competentes da área da saúde e da segurança do trabalho.
Era de tal maneira dramática a situação dos trabalhadores da fábrica do "penta", de tal nível a deterioração dos equipamentos e a degradação do meio ambiente da fábrica, que a única solução encontrada foi seu fechamento.
Esses acontecimentos estarrecedores não sensibilizaram os órgãos fiscalizadores trabalhistas, da área de saúde e ambientais. A via-crucis e a luta dos trabalhadores seria bem mais longa do que se pode hoje imaginar.
Mas na época da ditadura militar isso fazia sentido, tinha sua lógica perversa dentro dos parâmetros da censura, do arbítrio e da promiscuidade entre o poder autoritário e as multinacionais do pólo industrial de Cubatão.
3.8. Do "penta"ao "tetraper", a contaminação multiplicada
Com o fechamento da fábrica do "penta", seus trinta trabalhadores foram transferidos para a fábrica de tetracloreto de carbono e de percloroetileno, voltando de novo à exposição de substâncias e resíduos químicos organoclorados.
Para se ter idéia do resultado dessa transferência absurda, que agravou ainda mais o estado de saúde dos trabalhadores, um único dado é suficiente.
Examinado, na época, pela Dra. Agnes, o trabalhador do "penta" e do "tetraper" José Nepomuceno apresentou um nível excepcional de HCB no sangue onze microgramas por decilitro, acima de qualquer dado existente na literatura médica especializada.
"Do fechamento da fábrica do "penta" até 1968, brigamos com a Rhodia para adquirir alguns direitos"- relata Nilson de Paula Eller, "entre eles o do acompanhamento médico. As respostas que a Rhodia dava eram idênticas às de hoje: não existem trabalhadores contaminados. Não existem trabalhadores doentes".Continua Nilson de Paula: "De 1976 a 1986, foram dez anos de luta, até que, depois de muito dizer não, ela (Rhodia) acabou concordando que havia trabalhadores doentes. Concedeu garantia a um grupo de trinta trabalhadores e se comprometeu a dar assistência médica, que não é feita muito bem até hoje. Desses trinta restam apenas doze empregados na Rhodia porque os outros ela conseguiu, com dinheiro, comprar e tirar de dentro da fábrica. Alguns se aposentaram. Naquele tempo presenciei a morte de três trabalhadores contaminados".
Outra observação feita pela Dra. Lia Giraldo sobre a exposição múltipla dos trabalhadores é que, "além das alterações hepáticas, como o aumento do fígado ao exame clínico - hepatomegalia - comum à maioria dos contaminados, temos que avaliar outras consequências dessa exposição ao hexaclorobenzeno, ao tetracloreto de carbono, ao percloroetileno, ao pentaclorofenol. Avaliar, por exemplo, a parte citogenética, porque muitos desses produtos são cancerígenos. E, fazer uma avaliação neuropsicológica dessas exposições a produtos também neurotóxicos. Vários trabalhadores tomam uma série de medicamentos psicotrópicos porque o diagnóstico é o de problemas emocionais, quando são decorrentes da exposição".
E a Dra. Lia Giraldo conclui: "Então, os serviços de saúde de um modo geral, precisam entender que essas exposições são complexas, atingem o organismo de uma forma sistêmica e não podemos nos limitar a examinar o fígado dos trabalhadores, ou então, o sangue, a parte renal, etc.".
4. "LIXÕES DA RHODIA"
4.1. Muito além das fábricas
As catástrofes ambientais causadas pela produção industrial moderna, principalmente na área química, apresentam uma característica comum: "o contágio crescente da fábrica sobre o ambiente", a difusão do dano, da nocividade".
Nos casos dos desastres por poluentes químicos, a expansão da contaminação atinge um raio inusitado e imprevisível.
Em relação às comunidades e ao meio ambiente próximos o impacto é direto. Mas as possibilidades de ampla dispersão são múltiplas e variadas.
De maneira insofismável, os resíduos industriais organoclorados começaram a sair da fábrica da Rhodia em 1976 e o despejo inadequado desses dejetos perigosos intensificam-se a partir de 1978.
Logo após, portanto, da data em que a Rhodia assumiu a Clorogil, ela assinava o primeiro contrato de transporte de resíduos com a empresa "Luiz Vilmar Cordeiro".
Em 1978 tem-se o segundo contrato entre a Rhodia e a Colomaq - Máquinas, Equipamentos e Serviços Ltda. Este contrato, assinado em julho, prevê atividades de transporte e destinação do "lixo químico"durante dois anos.
Tudo indica que a Clorogil despejou o lixo internamente em sua própria área, e nos rios Cubatão e Perequê, em suas margens e leitos.
A Rhodia e suas transportadoras oficiais são responsáveis pelos "lixões" mais importantes - os de Samaritá - tanto pelo volume como pela inadequação total dos "lixões".
Um caso interessante, relatado na sequência, é o de Itanhaém, onde foram encontrados "lixões" distantes oitenta quilometros da fábrica da Rhodia.
A essa dispersão deliberada e criminosa, seguem-se outras promovidas pela natureza e novamente pela ação do homem.
A partir dos "lixões da Rhodia" os resíduos químicos contaminaram o solo, os rios, o lençol freático, o ar, atingiram o complexo estuarino chegando às praias, contaminando a fauna e flora marinhas.
4.2. Destino - Praça da Bíblia, nº 1
Os "lixões", principalmente os localizados às margens dos rios, contaminaram toneladas de areia.
Durante pelo menos 15 anos saíram dessas áreas milhares de caminhões carregados de areia contaminada. A areia para a construção civil em toda a Baixada Santista foi retirada do Rio Branco e Rio Mariana, em São Vicente; e do rio Cubatão, áreas comprovadamente contaminadas.
No fim da década de oitenta saíram dos rios de Samaritá - o Branco e o Mariana - 500 caminhões de areia por dia para as obras de ampliação do retroporto de Santos.
A vila dos pescadores, em Cubatão, foi aterrada com material contaminado.
Da mesma forma com que análises da Cetesb detectaram organoclorados e "lixo químico" no aterro do prédio da escola do Senai, na Praça da Bíblia, nº 1, em Cubatão, é bem provável que o veneno seja encontrado em areia de playgrounds da Baixada Santista, em contato direto com as crianças.
Somente em 1993, a extração e comercialização de areia das margens do rio Cubatão, próximo a um "lixão da Rhodia", foi proibida pela intervenção do promotor Pablo Greco, da Curadoria do Meio Ambiente de Cubatão. Análise da Cetesb indicou contaminação da areia que estava sendo comercializada com metais pesados e organoclorados de alta nocividade e de potencial cancerígeno reconhecido.
4.3. Pó-da-china em São Vicente
Entre "lixões" encontrados pela população, confirmados pela Cetesb e assumidos legalmente pela Rhodia, os de maior risco são os localizados na área continental de São Vicente - em Samaritá - e no Quarentenário.
A magnitude do risco desses "lixões" pode ser avaliada pela quantidade e conteúdo dos resíduos, pela exposição direta, múltipla e prolongada sofrida pela população e pela abrangência da agressão aos ecossistemas locais.
A quantidade de materiais contaminados nos "lixões " de Samaritá e em seu entorno ultrapassa 100 mil toneladas.
Hoje, a Estação de Espera acoberta algo em torno de 35 mil toneladas. Até maio de 1993 a Rhodia tinha removido para o incinerador 60 mil toneladas, segundo dados da Cetesb. Permanece a dúvida sobre a quantidade de resíduos remanescentes que continuam interagindo com a areia e o solo em processo de contaminação contínua.
O conteúdo dos "lixões" é uma combinação nefasta de venenos organoclorados, com predomínio do HCB - o hexaclorobenzeno. Em menor volume o pentaclorofenato de sódio - o "pó-da-china", o tetracloreto de carbono o tetracloroetileno. E, entre outros podemos destacar o hexaclorobutadieno pelo seu potencial cancerígeno elevado.
É provável a presença de dioxina formada nos "lixões", conforme a opinião de especialistas como o engenheiro Sérgio Alejandro, na época gerente regional da Cetesb em Cubatão, os representantes do Greenpeace - com acúmulo de experiências sobre acidentes semelhantes no mundo inteiro - e um especialista em resíduos perigosos, Jairo Restrepo, então assessor de José Lutzemberg Secretário Nacional do Meio Ambiente.
4.4. Samaritá - quarto de despejo da Baixada Santista
A Rhodia e seus transportadores não poderiam ter escolhido região mais incompatível para depositar, de forma extremamente desastrosa, o seu lixo tóxico. E dentro da região, tanto em Samaritá como no Quarentenário, os transportadores da multinacional francesa, despejaram o lixo em lugares críticos, vitais para o equilíbrio e a integridade dos ecossistemas.
O resultado foi uma sequência interminável de desastres ambientais, que por sua vez atingiram a população de maneira inconcebível.
Os poucos dados, documentos e testemunhos confiáveis indicam os anos entre 1976 e 1984 como a época em que os "lixões" foram implantados e progressivamente ampliados pelo aumento e intensificação do despejo perigoso.
Nessa época, e simultaneamente, assiste-se o início da ocupação urbana, o surgimento e crescimento dos primeiros núcleos habitacionais.
O que aconteceu foi uma coincidência entre o crescimento populacional e urbano e a ampliação do volume de resíduos e da área contaminada.
Na sequência, as pessoas e os venenos químicos se aproximaram perigosamente e chegaram a um ponto de encontro inevitável, e fatal para a saúde humana.
"Lixões" e núcleos habitacionais ficaram frente a frente. A natureza eliminou a distância que os separavam.
Os despejos promovidos pela Rhodia criavam "lixões" a céu aberto, sujeitos às intempéries como as chuvas de verão, com índices pluviométricos altos. O desnível entre os "lixões" e os núcleos habitacionais carregam as águas das chuvas com os resíduos e material contaminado para as ruas e as próprias casas.
Os estudos fotográficos de Calstran, realizados a partir de 1972 e analisados pela Dra. Agnes, mostram que as linhas de drenagem superficiais das águas pluviais correm das áreas dos depósitos de "lixo químico" para as áreas de mangue dos rios Branco, Mariana e Taquimboque.
Os resíduos se dispersam, atingem os mangues e a rede de rios que desaguam no Canal dos Barreiros, atingindo o complexo estuarino.
O acúmulo de resíduos nos "lixões" provoca infiltração permanente no solo, levando a contaminação para o lençol freático e migrando através das águas profundas.
Os ventos também agiram sobre os "lixões", sempre com novos resíduos depositados nos seus cumes, levando a poeira tóxica para um entorno de raio desconhecido, fixando-a na vegetação e invadindo as próprias casas.
Acresça-se ainda o movimento das marés, o fluxo e o refluxo das águas dos sistema hídrico, o que vai ampliar a contaminação tanto do solo, como da água.
4.5. Poço sem fundo da contaminação
Análises da Cetesb indicaram resíduos químicos em diversas residências da gleba II do Parque das Bandeiras. Em seis das casas selecionadas para a análise, os poços artesianos apresentavam contaminação de 0,007 à 0,016 microgramas de HCB por litro.
A distância entre os "lixões" da rodovia Padre Manuel da Nóbrega e a gleba II é de sete quilômetros. O raio de contaminação química continua desconhecido e incalculável.
Por último, as ações antrópicas completam e agravam esse movimento catastrófico de expansão dos produtos tóxicos.
A desinformação deliberada sobre os "lixões", o seu conteúdo e a omissão dos órgãos públicos fiscalizadores, propiciaram ocorrências semelhantes à migração de areia contaminada.
Reportagem do semanário Sem Censura (20 a 26 de março de 1992) apresenta denúncia popular contra um administrador regional que autorizava a extração de aterro de local com placas sinalizando a contaminação do solo. Caminhões de aterro contaminado foram transportados para o próprio Jardim Rio Branco, para outros bairros de Samaritá e, com certeza, para outros municípios da Baixada Santista.
4.6. Poltergeist
O cenário é estarrecedor: casas erguidas sobre aterro contaminado, construídas com areia contaminada, localizadas em um meio ambiente contaminado, com água contaminada, cadeia alimentar contaminada. São evidências conclusivas de que crianças já nascem contaminadas através da placenta e, desde a primeira infância, contaminadas pelo leite materno.
Sebastião Pinheiro, autoridade em "lixo químico" organoclorado e substâncias tóxicas letais, estudioso de tragédias ambientais como a ocorrida na construção da hidrelétrica de Tucuruí onde foi usado o "agente laranja" nas florestas das áreas de represamento, é categórico quanto à situação de Samaritá: "Não quero de nenhuma forma ser alarmista, mas crianças que crescem em cima desses resíduos podem estar condenadas a morrer de câncer. O local ainda encontra-se sobre exame".
4.7. Extrema-unção a Samaritá
Em 29 de agosto de 1984 a Prefeitura Municipal de São Vicente era oficiada pela regional de Samaritá para que a Cetesb procedesse inspeção minuciosa nas margens do rio Branco.
A Sociedade de Melhoramentos do Parque das Bandeiras denunciava às autoridades sobre o despejo de produtos nocivos nas margens do rio Branco.
Os pescadores denunciavam o aparecimento de peixes com deformações e cegueira, ao longo dos rios da região.
A população organizada - 22 mil habitantes no Parque das Bandeiras - através de suas lideranças como o padre Porfírio, José Gomes Diniz (presidente da Sociedade de Melhoramentos) e Umbelino Souza (secretário da entidade), denunciaram e promoveram manifestações que obrigaram a Prefeitura, a Cetesb e a Rhodia, a tomar posição oficial sobre os "lixões".
O padre Porfírio - transferido da Igreja Matriz de Cubatão pela defesa intransigente das vítimas da poluição industrial - conta: "Cansei de dar extrema-unção a pessoas jovens e precocemente atacadas por doenças estranhas e fulminantes".
Umbelino e Diniz relatam que "o lixo da Rhodia começava a aflorar do solo, o rio Branco ficou com longos trechos amarelos, tal a quantidade de resíduos despejados no seu leito, um mal-cheiro insuportável e sufocante impregnava a região, com o calor e o vento a população sentia o pó-da-china no ar, invadindo as casas".
Em relatórios e entrevistas ao gerente geral e ao presidente do Conselho de Administração da Rhodia, Paulo Reis de Magalhães, o padre Porfírio e a Sociedade de Melhoramentos alertavam: "Há milhares de pessoas expostas ao pentaclorofenol aqui em Samaritá, trinta operários da Rhodia sofrem sérios problemas no fígado, rins, baço, pulmões e pele, porque foram contaminados pelo pentaclorofenol há sete anos".
A população organizada unia-se aos trabalhadores da Rhodia para exercerem juntos a defesa de seus direitos, da cidadania e do meio ambiente, dando continuidade à luta que começava.
Em 23 de agosto de 1985 nova denúncia da Sociedade de Melhoramentos indicava novo "lixão" no quilômetro 67 da rodovia Padre Manuel da Nóbrega, como resíduos idênticos aos do quilometro 69, ao lado gleba II do Parque das Bandeiras. Neste ofício também era solicitado análise da água dos poços artesianos localizados na gleba II, pelo Instituto Adolfo Lutz.
Em 28 de agosto o último grande "lixão"de Samaritá foi denunciado. Situava-se na área do Quarentenário, próximo a chácaras, despejado junto ao rio Piassabussú e que vinha contaminando gravemente o Jardim Rio Branco.
No dia 26 de dezembro, o Departamento Regional de Saúde do Litoral - DRS 2, que já participava das denúncias com as Sociedades de Melhoramentos pedia definição de objetivos comuns das autoridades, com relação à água dos poços da gleba II contaminados por hexaclorobenzeno - HCB.
No mesmo período a diretora técnica do DRS 2, Dra. Lia Giraldo, outra pioneira na defesa das vítimas da Rhodia, realiza e apresenta o primeiro inquérito epidemiológico da morbidade da população da gleba II do Parque das Bandeiras.
A atuação da Dra. Lia Giraldo e da Dra. Agnes Soares de Mesquita foram fundamentais para o deslindamento do "caso Rhodia". O trabalho teve continuidade e prossegue até hoje, com a Dra. Lia atuando junto aos trabalhadores da Rhodia e a Dra. Agnes junto à população contaminada de Samaritá.
4.8. Três opiniões - uma sentença
Três profissionais com consistente conhecimento do "caso Rhodia"e informações abrangentes sobre o problema resumem a situação de Samaritá pós-" lixões".
Em um dos primeiros relatórios periciais elaborados pelo então funcionário da Cetesb - o geólogo José Antonio D' Ambrósio, pode-se constatar a extrema gravidade da situação: "De acordo com os procedimentos de como foram expostos os resíduos, o lugar não pode ser aproveitado para a agricultura, para a construção de moradias, indústrias, qualquer atividade".
Em declaração à revista alemã Geo Magazine, em abril de 1992, o gerente geral da Rhodia na Baixada Santista, Octacílio Miguel Teixeira Tavares, já com informações e estudos aprofundados sobre a contaminação provocada pela sua empresa na região, confirmava de forma dramática e contundente o parecer do geólogo D' Ambrósio: "Nenhum ser humano deve ter contato com essa coisa, o lugar onde foi depositado é irrecuperável, lá ninguém deve cultivar nada, lá ninguém deve beber água".
Uma das conclusões do estudo da Dra. Agnes resume o aspecto básico da questão: "... podemos estar assistindo à instalação de uma bomba de efeito retardado e deixando às futuras gerações uma herança de problemas de difícil solução. Modificar esse prognóstico sombrio depende muito mais de uma decisão política do que de possibilidades técnicas operacionais".
4.9. Segredo de polichinelo
É inacreditável a omissão da Rhodia e da Cetesb no caso das "descobertas"dos três primeiros "lixões" em Samaritá.
Em 1978 a Cetesb publicou um documento - "Resíduos sólidos industriais na bacia do rio Cubatão - VI" que localizava e dimensionava os resíduos químicos organoclorados até então despejados pela Rhodia. Em diversas entrevistas para a imprensa, o então gerente regional da Cetesb repelia a acusação de omissão do órgão estatal. Segundo Sérgio Alejandro, constatou-se o lançamento de resíduos químicos da Rhodia na região de Samaritá em 1978. Até 1981, fez-se o levantamento geral da área e programas de controle.
Apesar de todos esses dados, a Cetesb não tomou uma mínima providência, como a de cercar imediatamente as áreas de risco onde hoje vivem milhares de famílias.
É impossível que a Rhodia não tenha recebido qualquer notificação da Cetesb, ou pelo menos seus engenheiros e executivos não tivessem conhecimento do documento publicado sobre os resíduos e os estudos sobre seu despejo inadequado na bacia do rio Cubatào e na área continental de São Vicente.
A Cetesb e seu gerente regional, a Rhodia e seu gerente geral para a Baixada Santista sabiam dos "lixões", do seu conteúdo e das consequências para a saúde pública. Eles ocultaram informações vitais à população, da mesma forma que agiram com os trabalhadores da unidade do "penta" e da unidade do "tetraper". Ao que tudo indica, deliberadamente.
Os "lixões" de Samaritá eram um segredo de polichinelo. Só as vítimas da Rhodia não sabiam.
4.10. O tempo passa, o tempo voa
Entre a data da "descoberta" do primeiro "lixão" em agosto de 1984, até o início da remoção dos "lixões" para a Estação de Espera em julho de 1986, passaram-se dois anos.
Deve-se ressaltar aqui a extraordinária capacidade da Rhodia e da Rhône-Poulenc de protelar, "empurrar com a barriga" qualquer solução que favoreça a vida e a saúde dos trabalhadores e da população.
Por outro lado, observa-se a incapacidade dos órgãos públicos, principalmente da Cetesb, de obrigar a multinacional à cumprir as determinações legais.
A Rhodia começa o despejo organizado, contratado, em 1976, 48 horas depois de entrada em vigência da lei estadual do meio ambiente.
A Cetesb localiza os "lixões" entre 77 e 78 quando edita o documento oficial. A proibição do despejo só ocorre em 1985.
Na unidade química da Rhodia os trabalhadores adoeceram por contaminação comprovadamente desde 1974. Em 1975 morrem dois trabalhadores. A fábrica do "penta" foi fechada em 1978. A solução trabalhista para os 30 sobreviventes do "penta" só acontece em 1988.
Enquanto isso, trabalhadores e população ficaram expostos aos resíduos, e o meio ambiente sofreu o processo progressivo de contaminação.
Embora a discussão sobre quais as soluções a serem adotadas levasse dois anos, a conclusão foi apressada e nitidamente favorável à multinacional. Remoção dos resíduos para uma Estação de Espera e posterior eliminação do material contaminado pelo polêmico método de incineração.
4.11. Itanhaém - longe da Rhodia. Perto da contaminação
Em agosto de 1990, por denúncia da população, do Condema e ecologistas, foi identificado pela Cetesb um novo depósito de resíduos da Rhodia. O "lixão" foi encontrado no sítio de um morador local, o Coca, próximo ao Km 9 da estrada do Rio Preto.
A localização desse depósito apresentou algumas características inéditas. Uma delas foi a distância surpreendente da fábrica da Rhodia - 78 km.
A distância percorrida para o descarte é um indicativo da probabilidade considerável da existência de novos "lixões" em outros municípios da Baixada Santista.
Outro lado preocupante foi a ocorrência de 11,2 gramas de HCB por quilo, conforme laudo da Cetesb. Sebastião Pinheiro, então assessor do Ministro do Meio Ambiente, considerou a quantidade assustadora.
A região também merece destaque. O sítio do Coca fica próximo a uma rede de rios, canais, lagoas e pântanos. Na época do verão a água das chuvas alaga todo o terreno de planície, o que deve ter propiciado uma grande dispersão de resíduos e contaminação dos rios e dos poços existentes na área rural. Toda a bacia hidrográfica pode ter sido afetada.
Outra consideração é sobre o comportamento dos resíduos durante o longo período de permanência nos depósitos, sob o tempo e as intempéries. Como ocorreu com os "lixões" de Samaritá, tudo indica a possibilidade de infiltração dos resíduos em direção ao lençol freático, ampliando a área contaminada. Observa-se que na operação de remoção em janeiro de 1992, a Rhodia retirou 165 toneladas.
Inspeção posterior da Cetesb detectou resíduos remanescentes.
Na Segunda operação, em outubro de 1992, foram retirados mais 780 toneladas de materiais contaminados. Desconhece-se a fiscalização da Cetesb em relação a área do sítio do Coca.
A pressão da sociedade organizada e de entidades ambientalistas, em 1990, exigiu novas pesquisas da Cetesb, sendo encontrados mais três "lixões", nos quilômetros 6, 5 e 2 da mesma estrada do Rio Preto, em 1991. Por motivos jurídicos o material contaminado desses "lixões" não foi removido até 1993.
Em 10 de junho deste mesmo ano o promotor de Justiça e curador do meio ambiente de Itanhaém, Marcelo Rovero, impenetrou uma ação pública de responsabilidade por danos ao meio ambiente. Além da indenização ao município, a Rhodia fica obrigada a remover os resíduos. A Cetesb foi citada, na mesma ação por se omitir da efetiva fiscalização da área.
A Rhodia deverá custear os serviços de recuperação do meio ambiente degradado pela contaminação nas quatro áreas dos "lixões".
O relato dos vizinhos e familiares de seu Coca, já falecido, é que a carga tóxica foi recebida em 1978, doada como adubo para as plantações do sítio. Não se sabe em que quantidade os resíduos foram aplicados.
A casa foi abandonada e o paradeiro dos antigos moradores é desconhecido.
Até hoje não houve a remoção, nem a demarcação da área de contaminação, nem a avaliação da provável contaminação do lençol freático e nenhum levantamento e monitoramento de saúde dos moradores da região.
4.12. "Viver Pilões"
Ao contrário dos primeiros "lixões" localizados em Samaritá nos anos de 1984 e 1985, os "lixões" de Cubatão foram os últimos denunciados pelos trabalhadores e pela comunidade e só reconhecidos oficialmente pela Rhodia em 1992 e 1993.
O principal deles, o do sítio dos Pilões, embora atingido diretamente e contaminando um núcleo habitacional de população reduzida - 73 famílias com 254 pessoas - tem características e agravantes diferenciados e inéditos em relação aos demais "lixões".
Em Pilões, o descarte dos resíduos perigosos foi múltiplo e promovido por diversas indústrias do pólo de Cubatão.
Assim a composição do "lixão"apresenta, além dos organoclorados, resíduos de uma série de materiais pesados. Laudo da Cetesb de maio de 1991 relacionou: alumínio, bário, arsênio, cádmio, chumbo, cobre, cromo, ferro, manganês, prata, zinco e mercúrio - todos com potencial cancerígeno e em quantidade elevada. Nos resíduos organoclorados predominam o HCB, em quantidade 3 mil vezes superior ao tolerado pela Federação das Indústrias Químicas da Alemanha, conforme observação de Elio Lopes, engenheiro da Cetesb.
Durante 23 anos, até 1979, funcionou como "lixão municipal". Desconhece-se a partir de que data passou a receber também o lixo industrial, entre eles os organoclorados da Rhodia. De forma clandestina as indústrias continuaram o despejo até 1985.
Este "lixão" localiza-se em área de manancial, pouco antes do ponto de captação da Estação de Tratamento de Água - ETA da Sabesp.
As famílias de Pilões moram literalmente em cima do "lixão" em contato direto, contínuo e prolongado com os resíduos tóxicos, desde o ínicio da década de setenta.
Houve acompanhamento médico regular desde 1988 feito pelo Dr. Eládio Santos Filho, da Secretaria de Estado da Saúde. Foram realizados exames clínicos e controle epidemiológico. Análises toxicológicas do Instituto Adolfo Lutz comprovaram contaminação múltipla e generalizada pela população, por hexaclorobenzeno - HCB, outros organoclorados e por metais pesados.
Pela primeira vez, toda a comunidade organizada na associação "Viver Pilões", com a liderança de Wanderlin O. Paranhos conquistou o direito, depois de anos de luta, de relocação da área contaminada. As 73 famílias ganharam o direito de moradia decente, em conjunto do CDHU.
Resta ainda a conquista de direitos indenizatórios e a garantia do atendimento médico especializado e permanente, custeado pela Rhodia.
Todas as famílias de Pilões movem ação contra a Rhodia.
Hoje, a luta do "Viver Pilões" é uma referência e um paradigma para as comunidades vítimas da Rhodia.
4.13. Dessa água não beberei
De todos esses aspectos, o mais grave é o da qualidade da água tratada pela Sabesp - Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, para abastecer a maior parte da Baixada Santista.
Embora o rio Cubatão seja um rio classe II - próprio para o consumo doméstico após tratamento convencional, sua água sofre alterações de qualidade após sua confluência com o rio Pilões.
O "lixão" de resíduos sólidos industriais perigosos próximo à sua margem direita, a probalidade de mais "lixões" ao longo de suas margens, atividades agrícolas, como a bananicultura, influenciam decisivamente esta mudança de qualidade.
Laudo pericial da Cetesb revela índices elevados de metais pesados e resíduos organoclorados na margem direita e no sedimento do rio Cubatão.
Acresça-se ainda que diversos metais pesados como fósforo total, chumbo, cobre, zinco, ferro e manganês estão fora dos parâmetros estabelecidos pela legislação federal.
As análises da Cetesb indicam a presença significativa de hexaclorobenzeno e pentaclorofenol no sedimento do rio Cubatão, após a confluência com o rio Pilões e antes da estação de tratamento.
5. ESTAÇÃO DE ESPERA
5.1. O Caminho de volta
A remoção dos "lixões" para a Estação de Espera no quilômetro 67 da rodovia Padre Manoel da Nóbrega e, posteriormente, da Estação de Espera para o incinerador da Rhodia, transformou-se em uma operação tão nociva aos trabalhadores e à população, e tão danosa ao meio ambiente, quanto a operação do derrame clandestino nos anos 70 e 80.
A remoção implica em intensa movimentação de solo e em uma renovada exposição dos resíduos e materiais. O processo de escavação e revolvimento dos aterros a céu aberto, a movimentação do entulho perigoso no ensacamento, as perdas de material no transporte entre os pontos de deposição, ampliaram ainda mais o raio da área contaminada.
O que agravou ainda mais os trabalhos de remoção foi o volume descomunal de material contaminado. Cálculos da Rhodia e da Cetesb indicam 100 mil toneladas retiradas dos "lixões". Entre 1988 e 1993 foram escavados e transportados para incineração, 60 mil toneladas, restando ainda 33 mil toneladas na Estação de Espera.
A Estação de Espera, por uma série de circunstâncias da época, pela polêmica levantada pelo "caso Rhodia", pela vigilância da sociedade organizada, da imprensa e dos órgãos públicos, foi projetada e construída com padrões corretos de engenharia e segurança.
O aterro controlado tinha capacidade para 12 mil toneladas.
A previsão equivocada de total do material a ser removido foi o primeiro de uma série de erros.
O local da construção exigiu aterramento do pequeno lago próximo, drenando resíduos em grande quantidade para o rio Branco.
Os moradores das imediações não foram imediatamente transferidos.
Os prazos para a construção da Estação de Espera não foram obedecidos.
As condições dos trabalhadores das diversas empreiteiras que participaram das obras, o seu número, a possível contaminação ainda estão sendo levantadas.
O Sindicato dos Químicos, na época, elaborou dossiê denunciando as progressivas transgressões do projeto inicial em relação à segurança e condições de trabalho dos trabalhadores da Rhodia e das empreiteiras.
O mais importante é que a triplicação da capacidade prevista, de 12 mil toneladas para 33 mil toneladas, resultou em problemas graves para a segurança do volume em relação às dimensões do projeto. A permanência provisória do material para 30 meses prolonga-se até hoje.
Um imenso elefante, não exatamente branco, com 33 mil mag-sacs de contaminação no seu bojo, continua estacionado no quilômetro 67 da rodovia Padre Manoel da Nóbrega.
O gerente da Rhodia, Octacílio Tavares, assegura que "fatores de engenharia" garantem à Estação de Espera suportar até 100 mil mag-sacs de material contaminado. Talvez seja previsão do Sr. Octacílio sobre o volume dos resíduos remanescentes em Samaritá.
5.2. No céu, na terra, em toda parte
Depois de contaminar a terra e as águas da Baixada Santista em proporções incalculáveis, a Rhodia começão a operar, em maio de 1988, um incinerador importado da França.
Na época em que a Rhodia e a Cetesb fizeram a opção pelo incinerador para eliminar o lixo químico - 1986 - argumentando ser sua tecnologia de ponta, a alternativa já era amplamente discutida.
Sebastião Pinheiro trazia a opinião do professor da Universidade de Tubigen, Alemanha, que afirmava: "Os incineradores atualmente no mercado são considerados tecnologia absoleta. Só a Alemanha tem domínio da tecnologia de incineração, sem risco de emitir dioxinas". E acrescentou que esta tecnologia "custa 1 bilhão de dólares" e que "o Brasil não precisava repetir o mesmo erro cometido na Alemanha e em outros países da Europa".
A opinião do professor Peter Krauss é compartilhada por um número crescente de cientistas e por entidades internacionais, como o Greenpeace, que tem na campanha contra os incineradores, uma de suas metas mais importantes.
Os argumentos são aparentemente simples. Com a tecnologia atual, nenhum incinerador opera com 100% de eficiência.
Sebastião Pinheiro informa que o incinerador da Rhodia, na eliminação de dioxinas e furanos, apresenta uma eficiência 10 mil vezes inferior aos incineradores alemães.
O que ocorre então é que o incinerador obsoleto transforma-se em uma nova fonte de poluição.
O material contaminado entra o incinerador como sólido e sai como fumaça. Além de produzir, como remanescente, cinzas ainda com níveis de contaminação.
Quando o incinerador não opera com temperaturas severamente adequadas, a combustão fica incompleta gerando, no caso dos organoclorados, uma substância extremamente nociva, a dioxina, das mais letais e violentas criadas pelo homem.
Recente estudo da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos - EPA, indica que o risco da dioxina prejudicar o feto é maior do que o risco do câncer.
Como já foi visto no caso do agente-laranja no Vietnã, proliferaram os casos de nascimentos de crianças com deformações brutais, e um índice elevado de câncer no fígado.
Com referência ao incinerador da Rhodia, a Greenpeace, em documento de junho de 1993, dá um histórico minucioso e alarmante sobre as possibilidades conclusivas de derrame de dioxina na atmosfera.
O incinerador da Rhodia foi instalado e operou durante cinco anos sem o Estudo de Impacto Ambiental, Rima, e sem qualquer fiscalização externa, uma vez que a Cetesb não possui condições nem métodos disponíveis para o monitoramento de dioxinas.
Acatando testes e análises da própria Rhodia e de seu laboratório de Paulínia, a Cetesb permitiu que o incinerador operasse seus fornos a 900 e 1.000 graus centígrados abaixo dos padrões internacionais - 1.200 graus centígrados para a queima de organoclorados.
Pelo menos em uma ocasião o incinerador da Rhodia operou queimando acima da capacidade determinada pelas normas da Cetesb - de 50 toneladas/dia, incinerando 1.904 toneladas em julho de 1989, e comemorando com churrasco aos seus funcionários o recorde obtido.
Laudos da Cetesb indicaram a presença de números acima dos permitidos pelas normas internacionais de contaminantes nas cinzas da incineração. O que significa a volta ao meio ambiente de dioxina, substância bioacumulativa, cancerígina e mutagênica.
Para o Greenpeace, a importação do incinerador industrial como solução para eliminar os resíduos tóxicos é um biombo que escondeu o verdadeiro objetivo da Rhodia.
"A instalação de um incinerador industrial pode ser um ótimo investimento, já que o serviço prestado rende mais de 3 mil dólares por tonelada, especialmente em Cubatão, região de alta densidade de lixo químico. O que se esconde com essa "solução" é que parte dos organoclorados presentes em resíduos sólidos incineradores vai para o ar na forma de substâncias cancerígenas, enquanto outra permanece nas cinzas da incineração".
6. INTERDIÇÃO DA FÁBRICA
6.1. Um "lixão" por excelência
É paradoxal. O último dos "lixões" encontrados localiza-se dentro da própria fábrica de uma multinacional que procura "excelência". Pelo volume - 15 mil toneladas de resíduos químicos quase "puros", com cinzas contaminadas pelo confinamento a uma área restrita e pela concentração no meio ambiente, é sem dúvida um "lixão" por excelência. Outro paradoxo - o incinerador foi erguido "em cima" de um depósito de resíduos organoclorados.
Para embasar a interdição da fábrica, o Ministério Público requereu vistoria da Cetesb que analisando amostra do solo da fábrica detectou índices assustadores: a presença de 1.830 microgramas/quilo de pentaclorofenol e 374.000 microgramas/quilo de hexaclorobenzeno.
Este "lixão" por excelência transformou a fábrica da Rhodia em local incompatível com a vida humana, além de danos irrecuperáveis ao meio ambiente circulante e ao lençol freático.
O pedido de eliminar de interdição da fábrica, apresentada pelos promotores Pablo Perez Greco e Geraldo Rangel de França Neto, apresenta outros índices de contaminação absolutamente incompatíveis para uma empresa de "primeiro mundo".
Na Alemanha é admitido um limite de hexaclorobenzeno de 50 partes por bilhão à 500 partes por bilhão. Na Suíça é de 10 partes por bilhão.
As amostras colhidas no galpão e no fosso clandestino da fábrica da Rhodia mostra números que ultrapassam os padrões internacionais em 12.080 a 15.340 vezes 50 partes por bilhões (Suiça) e 1.208 a 1.534 vezes 500 partes por bilhão (Alemanha).
As análises indicaram que a concentração de organoclorados no solo da fábrica era superior aos limites considerados toleráveis em países como a Suiça - cerca de 76.700 vezes.
Dos 150 trabalhadores, 149 estão contaminados. Entre eles foram diagnosticados inúmeros comprometimentos e lesões a organismo: esteatose hepática; lesão irreversível do fígado, alterações hepáticas, comprometimento de todos os órgão abdominais; reação inflamatória toráxica e abdominal; diminuição da defesa imunológica pelo aumento do timo, do baço, do tecido linfático; ocorrências neurotóxicas.
Existe documentação abundante, entre laudos, exames clínicos, análises efetuadas por profissionais que estudam e trabalham no "caso Rhodia" há muitos anos, por institutos como o Adolfo Lutz, Universidades como a Unicamp e instituições internacionais como a Organização Panamericana de Saúde que está financiando pesquisa junto a população de Samaritá.
Já era tempo da criação de um fórum multidisciplinar que efetuasse um balanço do trabalho até agora realizado, aprofundasse a pesquisa e perseguisse soluções para os trabalhadores e população contaminados, as vítimas da Rhodia.
A mesma Rhône-Poulenc, responsável por inúmeros crimes contra a saúde do ser humano no Terceiro Mundo, detém hoje o potencial da tecnologia médica mais avançada do Primeiro Mundo para pesquisar e diagnosticar e curar as doenças causadas pelos resíduos organoclorados que ela derramou.
A multinacional francesa Rhône-Poulenc e a Rover, americana, criaram a primeira rede globalizada de biotecnologia para descoberta da cura do câncer, das doenças cardiovasculares e distúrbios do sistema nervoso central, doenças que acometem as vítimas da Rhodia.
Já investiram 300 milhões de dólares e para 1995 estão destinados mais 100 milhões para a mais bem planejada e completa pesquisa do planeta no setor. Esta pesquisa envolve 14 empresas e organizações acadêmicas de pesquisas.
A Rhône-Poulenc - Rover (RPR) deve ser obrigada pelo governo brasileiro a participar da solução dos problemas de saúde pública que ela produziu e continua produzindo na Baixada Santista e em torno de suas fábricas no Brasil. O crime perpetrados pela Rhodia no Brasil são de responsabilidade do Estado Francês, até a pouco acionista dominante da Rhône-Poulenc hoje privatizada, mas ainda com o governo frances em posição majoritária.
O fechamento da fábrica pode abrir os caminhos da solução definitiva do "caso Rhodia".
"O Conceito de proteção da natureza implica no reconhecimento que a primeira natureza violentada na sua integridade é a natureza do homem e, sobretudo, a dos operários"Berlinguer, G. Medicina e Política. São Paulo.
"Nenhum ser humano deve Ter contato com essa coisa, o lugar onde foi depositado é irrecuperável, lá ninguém deve cultivar nada, lá ninguém deve beber água"Otácilio Miguel Teixeira Tavares
Gerente da Rhodia - Cubatão, em reportagem
da revista alemã GEO, 27/04/1992, sobre os
resíduos depositados nos lixões da Rhodia
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Apoio: Sindicato dos Químicos,
Farmacêuticos e Plásticos de São Paulo Maio de 1995 |
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